Matéria completa: Morte de empresário foi celebrada por promotor
Confira mensagens trocadas por membros do Gaeco antes e depois da morte de Marcelo Plastino
, atualizado
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Pressão sobre a família de um investigado para obtenção da delação premiada. Transferência de unidade prisional com o intuito de isolar o possível delator e, assim, facilitar a aceitação do acordo. E, por fim, comemoração regada a cerveja pelo suicídio do investigado. Eis alguns dos expedientes utilizados por promotores do Ministério Público que atuaram no âmbito da Operação Sevandija, relacionados ao empresário Marcelo Plastino, que se suicidou em 25 de novembro de 2016, enquanto negociava uma colaboração premiada com as autoridades.
O Jornal Ribeirão teve acesso, com exclusividade, ao maior conteúdo de arquivos relacionados à Sevandija já disponibilizados até o momento. O material, que integra outra operação, a Spoofing, foi o mesmo que acabou derrubando as condenações da Lava Jato.
Ao longo de quase dois meses, foi feita uma triagem, por amostragem, dos assuntos relacionados à Sevandija, e há muitas informações novas que sugerem procedimentos contestáveis, utilizados pelos integrantes do Ministério Público.
Nesta e nas próximas páginas, apresentaremos o conteúdo dos documentos da Spoofing e contaremos a história da morte do empresário, peça-chave para boa parte das denúncias feitas pelo MP, que resultaram em 36 condenações até o momento – todas elas pendentes, ainda, de julgamento de problemas técnicos da Sevandija em pauta no Supremo Tribunal Federal (STF).
O texto é apenas o primeiro de uma série de matérias que devem ser publicadas no Jornal Ribeirão nos próximos meses, conforme houver a análise de outros materiais, que vem sendo feita pela equipe do Jornal.
Em entrevista, líder da Sevandija admitiu existência do material
Em entrevista ao Grupo Thathi de Comunicação, em 2021 – primeiro veículo a divulgar a existência do material da Spoofing –, o promotor Leonardo Romanelli, que comandava a força-tarefa, admitiu a existência do grupo e afirmou saber da existência do material.
Ele declarou, na ocasião, não poder confirmar se todos os diálogos aos quais a Thathi teve acesso foram travados pelos integrantes da força-tarefa. “Primeiro, esses vazamentos são obviamente prova ilegal, obtidos através de uma ação criminosa. Ainda que não o fossem, esses diálogos não foram apresentados no processo, não podem sequer significar qualquer tipo de prova. E, por último, ainda que isso tivesse ocorrido, não há qualquer irregularidade no conteúdo das conversas”, afirmou Romanelli.
“A gente tinha um grupo, criado no Telegram, para manter contato sobre as investigações da Operação Sevandija”, disse o promotor. “Sabíamos que houve interceptação ilegal de parte das conversas, mas salientamos que não há nada de irregular ou ilegal nessa comunicação”, informou.
Para advogado, delação de Plastino demonstrou “atalho”
O advogado Alamiro Veludo Neto, que representou Marcelo Plastino até sua morte, acredita que a situação vivida pelo seu cliente demonstra um excesso de poder nas mãos do Ministério Público.
“Eles [o MP local] perceberam, assim como em Curitiba [na Lava Jato], que esse é um instrumento poderoso. Cria-se um atalho perigoso, que suprime, pela delação, o trabalho de investigação”, disse.
“A Sevandija foi um microcosmo da Lava Jato, incorrendo nos mesmos erros. Houve exploração midiática desproporcional do caso, colocando a Sevandija como a resolução dos problemas da cidade”, avalia.
Marcelo Plastino tirou a própria vida pouco após completar 50 anos, em 25 de novembro de 2016. Em um ato desesperado, deu um tiro na têmpora. Foi encontrado pela então namorada, Alexandra Martins Ferreira, no banheiro de seu apartamento, situado em um edifício no Jardim Botânico, Zona Sul de Ribeirão Preto. Era proprietário da Atmosphera Empreendimentos, empresa acusada de integrar o esquema de corrupção investigado na Operação Sevandija, o que foi, segundo muitos, a chave para sua morte.
Mas contemos a história.
Era por meio de sua empresa que a Prefeitura de Ribeirão Preto contratava funcionários terceirizados indicados por políticos, em um esquema de corrupção investigado pelo Ministério Público durante o governo da ex-prefeita Dárcy Vera. Através de Plastino, Dárcy encontrava espaço para indicados políticos trabalharem na administração sem concurso, prática ilegal.
Quando os crimes foram desnudados, com a prisão de dezenas de autoridades, o Ministério Público se interessou por uma delação premiada que revelasse a extensão do esquema de corrupção que, no entender do MP, movimentou mais de R$ 220 milhões em Ribeirão.
“Plastino era fundamental [para o MP]. Por isso, havia muito interesse em obter essa delação. Ao mesmo tempo, o MP, ao que me parece, queria vender caro, o que incluía não apenas a condenação, mas também os bens”, afirma Alamiro Veludo Neto, advogado de Plastino durante a negociação da colaboração premiada – e que ainda atua no caso para desbloquear o patrimônio do empresário – avaliado, na época, em R$ 23 milhões.
Veludo acredita que ele tenha sido “levado a um estado de desespero”. “Ele estava disposto a ceder, mas não completamente. Havia a questão patrimonial, que estava sendo discutida. E havia o MP, que, ao menos em parte, queria vender caro a delação. Foi muito precipitado. Mas isso acabou levando ao suicídio [de Plastino]”, analisa.
Expedientes
Plastino foi preso em 3 de setembro, ao retornar, ao lado da namorada, de uma viagem internacional, no aeroporto de Guarulhos. Os arquivos obtidos pelo Jornal Ribeirão mostram que os integrantes da Força-Tarefa da Sevandija discutiram abertamente, em 5 de novembro, a transferência de Plastino do Centro de Detenção Provisória (CDP) de Ribeirão Preto para o CDP de Serra Azul, com o intuito de forçar a delação.
As conversas revelam que a medida foi sugerida pelo promotor Marcel Bombardi, sendo a estratégia acatada pelo delegado Flavio Vietez, que argumentou, ainda, que, isolado, o empresário estaria mais propenso a negociar. No dia seguinte, o mesmo promotor reclama do fato de os presos da Sevandija ainda estarem todos juntos e conversa com um funcionário do CDP para que fossem separados.
Não foi, entretanto, o único expediente utilizado pelo Ministério Público. Em conversa na qual fazem inventário dos bens presentes no apartamento de Plastino, Luiz Janones, agente da Polícia Federal, recomenda fazer a apreensão dos bens “só para dar o desgosto para ele [Plastino]”. Dias depois, falam em apreender outros objetos, como televisores, ressaltando que o filho de Marcelo, Pedro Plastino, deveria ser avisado. “Vou dar dor de cabeça para esse FDP”, diz o promotor Marcel, no grupo.
Celebração
Embora marcada pela informalidade e, em certa medida, pela falta de bons modos, a comunicação dos integrantes do grupo do Telegram atingiu um novo patamar no fim da noite de 25 de novembro, data do suicídio de Plastino. A informação sobre o ocorrido chegou ao grupo às 23h45, pouco depois do registro da morte.
Coube ao promotor Marcel Bombardi informar a todos que ele havia se matado “com um tiro na cabeça”. “Estou bebendo essa para ele”, disse Marcel, no grupo, enviando na sequência a foto de uma garrafa de cerveja chamada “Roleta Russa”. Ele ainda informou que faria “questão de dar a coletiva” e perguntou “se a Glock [pistola] foi devolvida”.
MP mandou transferir Plastino para facilitar delação
Em busca de conseguir a delação premiada de Marcelo Plastino, o Ministério Público de Ribeirão Preto, acompanhado da Polícia Federal, articulou a transferência do empresário do Centro de Detenção Provisória para a Penitenciária de Serra Azul.
Em outro trecho da comunicação entre os integrantes do grupo, Bombardi informa que Marcelo Plastino havia descido para convívio com outros presos e que, por isso, a conversa com ele deveria ser adiada. “Acho melhor ele ficar mais um tempinho lá antes de conversarmos... o que você acha?”
Nos diálogos seguintes, fica nítido que a defesa de Marcelo Plastino iniciou a negociação de delação premiada com promotores quando ele foi transferido do CDP Ribeirão Preto para a Penitenciária de Serra Azul.
Análise
A namorada de Plastino, Alexandra, chegou a afirmar, logo após a morte, que o empresário apresentava quadro de depressão agravado pelos problemas legais enfrentados – o que jamais foi comprovado documentalmente. Quatro fontes distintas, que solicitaram anonimato, mas participaram das investigações, confirmaram a informação.
A psicóloga Fernanda Saviani Zeoti, doutora pela Universidade de São Paulo (USP), pondera que não se pode afirmar com segurança que a morte de Plastino tenha sido atribuída exclusivamente à pressão sofrida pelo empresário. Contudo, segundo ela, esse cenário certamente foi um dos fatores influentes.
“De fato, houve uma pressão muito grande sobre ele. Cria-se a hipótese de que tenha sido demais para ele, mas essa situação precisa ser analisada com profundidade. Existe, de fato, toda uma pressão sobre ele. Muitas pessoas não conseguem suportar, e esse não conseguir pode se manifestar de várias formas: a pessoa pode adoecer psiquicamente, pode surtar, pode partir para outros relacionamentos ou pode recorrer ao suicídio”, avalia.
Pressão
Outro ponto relevante para entender a morte de Plastino diz respeito ao filho dele, Pedro. O jovem participou ativamente do processo de delação, conversando cotidianamente com o pai sobre a administração dos negócios e falando inclusive com integrantes do MP e advogados para negociar.
Em uma das conversas, Pedro é chamado de “viadinho” pelo promotor Marcel, que pergunta se os bens de Plastino serão levados para um depósito ou deixados sob os cuidados da família. “Não é melhor depositar para o viadinho do Pepe [Pedro]?”, diz Bombardi.
OUTRO LADO
A reportagem tentou contato com os promotores Marcel Bombardi e Leonardo Romanelli, além de encaminhar pedido de nota ao Ministério Público de São Paulo.
O MP limitou-se a informar que “os expressivos valores recuperados e as condenações impostas aos envolvidos nos delitos detectados pelos promotores de Justiça comprovam o acerto da Operação Sevandija, que transcorreu sob parâmetros técnicos rigorosos, como é da tradição da nossa instituição”. A instituição não fez qualquer comentário sobre o suicídio de Marcelo Plastino.
Romaneli, por sua vez, não comentou o assunto, mas, em entrevista anterior ao autor da matéria, classificou os documentos da Spoofing como “ilegais”, ressaltando, ainda, que os diálogos retratados nesses documentos não apresentam qualquer irregularidade. Já Bombardi não se manifestou sobre o caso.
Documentos foram obtidos por hacker a partir do Telegram
Os arquivos com conteúdo divulgados com exclusividade pelo Jornal Ribeirão foram obtidos por Walter Delgatti Neto, o hacker conhecido como Vermelho, a partir de um grupo do Telegram denominado “Sevandija”, cujos integrantes eram promotores do Ministério Público, policiais federais, agentes federais e demais membros da força-tarefa.
Delgatti Neto invadiu celulares de autoridades, incluindo o ministro Sérgio Moro, em um processo que teve início com o promotor Marcel Bombardi, da Sevandija. A história, entretanto, começou quando o promotor foi responsável por iniciar uma investigação, em 2015, que levou à prisão de Delgatti por tráfico de drogas e falsificação de documentos públicos, ocasião em que foi detido com remédios e uma carteirinha falsa da Medicina da Universidade de São Paulo (USP).
Inconformado com o papel de Bombardi no processo – o promotor teria enviado policiais para investigar o caso –, Delgatti acessou o celular do promotor, obtendo, então, acesso a outros promotores, inclusive ao grupo da Sevandija, além de procuradores federais. Ao final, o hacker chegou até Sérgio Moro e altas autoridades envolvidas na Lava Jato.
O material obtido por Delgatti foi encaminhado ao jornalista Glenn Greenwald, então do Intercept, resultando na Vaza Jato. Com a divulgação dos documentos, o hacker Vermelho foi indiciado pela invasão dos celulares na Operação Spoofing, sendo que o conteúdo por ele obtido ilegalmente foi entregue à Polícia Federal e integra os arquivos da operação.
Um dos conteúdos descobertos nesses arquivos, portanto, diz respeito a dados da Operação Sevandija, iniciada em 2016 pelo Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) e pela Polícia Federal para investigar fraudes na Prefeitura de Ribeirão Preto, durante a gestão da prefeita Dárcy Vera.
Agente da PF suspeitou de invasão de celular
O agente da Polícia Federal Luiz Alécio Janones, um dos integrantes da força-tarefa que investigou os crimes apurados na Operação Sevandija, suspeitou da invasão aos celulares e chegou a avisar ao promotor Marcel Zanin Bombardi que deixaria o grupo, segundo ele, por conta de o aplicativo apresentar “falha de segurança”. “Este aplicativo NÃO POSSUI condições de segurança para nossas comunicações”, disse Janones.
O agente da Polícia Federal não teve seu celular invadido, mas sua comunicação enviada para o grupo do Telegram acabou salva, inclusive conversas privadas dele com Bombardi.
Imagem de Plastino na prisão foi enviada para grupo
Pelo menos uma foto de Marcelo Plastino na carceragem da Polícia Federal de Ribeirão Preto foi enviada para o grupo da força-tarefa da Operação Sevandija. As imagens foram feitas sem autorização e compartilhadas com os promotores.
Bombardi comentou sobre a imagem dizendo que “o FDP ainda consegue dormir”, numa referência a Plastino.
Confira os membros do grupo Sevandija no Telegram
Maurício Salvadori – Procuradoria-Geral do Estado
Mario Tebet – Crimes contra Prefeitos TJ/SP
Marcel Zanin Bombardi – MP
Flávio Vietez Reis – Delegado da PF
Roni Cláudio – Agente da PF
Sterf Pires – Agente da PF
Luiz Alécio Janones – Agente da PF
Em conversa com o filho, Plastino fala em alteração de documentos e provas
Em conversas com seu filho Pedro Plastino – que estão nos autos da Sevandija –, Marcelo Plastino abordou aspectos da delação premiada que negociava com o Ministério Público. As conversas integram os arquivos da Spoofing e ocorreram entre 19 de outubro e 25 de novembro de 2016, data da morte de Plastino. Estavam no celular de Marcelo.
Nos arquivos, Marcelo sugere ao filho “paciência”, enquanto o filho pergunta se o pai está “organizando as planilhas”, referência à indicação dos apadrinhados políticos contratados por meio da Atmosphera, um dos objetos da delação que ele negociava com o Ministério Público.
Após uma conversa por whatsapp, aparentemente pai e filho se desentendem; o filho diz para Marcelo Plastino seguir sozinho, o que sugere que ele estava tão afetado pela pressão por delação quanto o pai. Pedro, ainda contrariado, teria se recusado a acompanhar o pai para tratar do assunto da delação em reunião com advogados.
A reportagem falou com Pedro Plastino, que preferiu não se manifestar publicamente sobre o assunto. No documento, entretanto, admite que o MP tem sistematicamente informado que iria prender Marcelo, e roga ao pai que enfrente a situação, afirmando que ele “não tem nada a perder”.
Para advogado, Sevandija mostrou instituições desvirtuadas
A reportagem do Jornal Ribeirão entrevistou dezenas de advogados criminalistas, incluindo as defesas de cinco réus na Sevandija. No depoimento mais contundente, Flaviano Adolfo de Oliveira Santos, responsável pela defesa de Marco Antônio dos Santos, ex-secretário de Governo na gestão Dárcy Vera, culpa diretamente a ação dos promotores pela morte de Marcelo Plastino.
“Por entre os corredores escuros da burocracia estatal, onde a justiça deveria resplandecer como um farol, o que se revelou, no entanto, foi uma maquinaria sombria de humilhação, medo e morte”, disse. “A justiça, quando se desvirtua, deixa de ser justiça para tornar-se instrumento de controle, espetáculo de poder para uma mídia adoecida. Foi o que se evidenciou com a revelação de mensagens internas entre agentes do Ministério Público paulista”, afirmou.
No entendimento do profissional, os agentes de Estado, que deveriam guardar a dignidade dos presos — ainda presumidamente inocentes —, os satirizavam, ridicularizavam suas imagens como se não fossem seres humanos, “mas caricaturas descartáveis”. “A delação, neste cenário, deixa de ser instrumento de investigação para se tornar fruto do medo, da chantagem, da dor”.
Flaviano sintetiza, ainda, que a morte de Plastino deve levar a sociedade a revisar os métodos investigativos sob uma nova ótica, sobre os limites do poder e sobre a dignidade humana como valor absoluto — não negociável, não torturável, não ridicularizável.
“Houve a morte de um investigado na Operação Sevandija, que não morreu apenas como indivíduo: morreu como símbolo de um modelo de justiça adoecido. Que essa história não se repita.”